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Cozinha da Lilian - Piracicaba - SP

Lilian, a filha Luisa e a xícara do dia

A xícara do dia. Em minha conversa on-line com a Lilian, uma dezena de assuntos, vieses e recortes surgiram de nossas abstrações sobre a cozinha. Mas uma coisa ficou ressoando em minha mente desde que encerramos a chamada de vídeo: a xícara do dia. Na conversa sobre a vida e sobre vinhos – de histórias de adolescência a uma jornada com direito a reviravoltas dignas de novela, estudos e doutorados – a Lilian soltou lá pelas tantas, quando falávamos de mesa posta, os vocábulos que afetariam a narrativa de sua cozinha por essas linhas.

 

 

A xícara do dia.

 

 

 
 
Uma coleção de utensílios e delicadezas ajeitadas com esmero na bancada da cozinha

Lilian é professora no Instituto Federal de São Paulo, doutora em Ciência e Tecnologia de Alimentos em Piracicaba/SP, mãe da Luisa, casada com o Daniel, sobrinha de doceira famosa, neta de uma avó materna que cozinhava de tudo e de uma avó paterna que incentivava o uso de uma louça linda todo dia. De tudo isso mais as outras dezenas de papéis e atribulações de seu dia/vida é que deve ter saído o hábito diário, encenado dentro de sua área de calmaria que dá a ela o retorno a si. Caminha até a cozinha organizada com esmero do apartamento, escolhe o chá ou o café e permite-se ter o seu momento de paz e tranquilidade. Inala os aromas da bebida quente, filosofa em silêncio sobre o que sua alma e mente permitem, conduzida pelo sabor e aconchego do que estiver na xícara do dia.


O comer, o cozer e o beber são para Lilian o centro das relações sociais.

 

 

 

 
Tudo em seu lugar de forma harmônica e decorativa, mas igualmente úteis

A mesa e o paladar são \”lugares\” de reflexão e onde moram as premissas de transformação de um indivíduo. Sabe como poucos que ofertar comida – a si próprio e ao outro – pode ser um ato de amor, revolucionário, nutritivo e completo. Experimentou e viveu os sabores de um popular bandejão no centro de São Paulo, aprendeu a amar coentro em Tocantins, rendeu-se aos sabores da tradicional cozinha lusitana ao morar em Portugal, apurou o conhecimento sensorial sobre vinhos em passagem por São Roque… Tantas cidades, estados, países e situações marcaram a linha do tempo dessa alma cigana que se guia e se sustenta pelo sabor. Descrevo-a como um ensopado complexo numa kadaahee generosa e perfumada de massala. Difícil foi extrair dali, da alma de quem tem tantos assuntos saborosos e nutritivos, um único ingrediente para dialogar.

 

É na xícara do dia que Lilian potencializa sua cozinha e inspira a filha Luisa na rotina sagrada do dia a dia

Ao chegar pessoalmente em sua cozinha notei que talvez fosse um retrato de sua psique e sua alma: ingredientes diversos, centenas de memórias traduzidas em fotos na geladeira, ímãs de viagens, louças organizadas e objetos de valor emocional, alimentos, guloseimas, utilidades e amenidades cuidadosamente organizadas. Tudo em seu lugar de forma harmônica e decorativa, mas igualmente úteis, acessíveis e prontos para serem usados, degustados e saboreados. Assim como tanta sapiência, cultura, conhecimento, experiências, vida dentro dela mesma organizados numa alma pitta que consegue conter-se e serenar as potências num gesto cuidadoso e ritualístico como preparar a xícara do dia.

 

Creio que nesses momentos ela inspire a Luisa – a filha de 7 anos – a preparar seu próprio momento de conexão consigo mesma e organizar em si o tanto de coisa que ainda tem por vir. É na xícara do dia que Lilian potencializa sua cozinha, inspirando e afetando poderosamente o modo da filha ver e saborear certos momentos. Mesmo que haja outras receitas tão complexas e festivas na história de vida de sua família, é no momento que julga mais trivial (mas honesto e presente do dia) que reside o verdadeiro afeto – saboroso e transformador – da cozinha afetiva de Lilian.

 

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